«A Justiça é um acto de sobrevivência do ser humano. Ou, se se quiser, o último reduto: do indivíduo, da sociedade, dum país ou duma democracia, como a nossa»

 

Excerto do Discurso de Tomada de Posse de 12.07.2021 do Exmº Presidente do TRG, Desembargador António Sobrinho.

 
 
Amnistia e perdão (Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto)

 

Seis meses depois (elementos de estudo) - Dr. Cruz Bucho, Juiz Desembargador.

 

 

 

 

Introdução

A Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto1, de “Perdão de penas e amnistia de infrações”, entrou em vigor em 1 de Setembro de 2023 (artigo 15.º)2.

 

Segundo informa o Observador, de acordo com os dados enviados pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), aquela lei permitiu a libertação de 254 reclusos entre o primeiro dia de setembro e o último dia de 2023. No total, naqueles primeiros quatro meses, 925 presos beneficiaram da lei aprovada a propósito da vinda do Papa Francisco a Portugal, durante a Jornada Mundial da Juventude.

 

Para além de complexos problemas de constitucionalidade, as sucessivas leis de clemência3 suscitaram sempre muitas questões e divergências jurisprudenciais, algumas delas apenas resolvidas por via de assentos e de acórdãos de fixação de jurisprudência.

 

Essas questões e divergências jurisprudenciais são potenciadas por diversos factores.

 

Como referia o Cons.º Maia Gonçalves, in “Medidas de Graça no Código Penal e no Projecto de Revisão”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, Fasc. 1, Janeiro –Março 1994, pág. 11: “Sabe-se que a concessão de medidas de graça suscita, na prática, dificuldades de vária ordem, já que o órgão que as concede, por via de regra, não entra em pormenores de regulamentação, nem em questões que têm sede mais adequada na lei geral ou devem ser resolvidas pelo critério do julgador. E assim sempre as normas do Código representarão, como frisou o Conselheiro Manso-Preto na 11ª sessão da Comissão de Revisão do Código Penal, uma espécie de auxílio legislativo, permitindo decidir pontos sobre os quais o órgão que concedeu a medida de graça não tomou posição”.

 

Mas, como há muito a doutrina assinala4, falta a elaboração de uma teoria geral das medidas de clemência.

 

Outro factor perturbador reside nas demoras do inicio do processo legislativo e da necessária celeridade do processo.  

 

Assim, não obstante as Jornadas Mundiais da Juventude estarem há muito marcadas para decorrerem no dia 1 a 6 de Agosto de 2023, a Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª (GOV) que esteve na origem da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, só deu entrada nos serviços da Assembleia da República em 19 de Junho de 2023, estando prevista a interrupção dos trabalhos parlamentares no final de Julho.

 

Houve assim a necessidade de, a pedido do Governo, aprovar em 23-6-2023 a declaração da urgência do processo legislativo. 

 

No parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias que antecedeu tal aprovação refere-se expressamente que “já foram, anteriormente, por duas vezes, aprovadas pela Assembleia da República leis de amnistia e perdão de penas por ocasião da visita a Portugal do Sumo Pontífice e os respetivos processos legislativos foram sempre bastante céleres e expeditos, mediando menos de um mês entre a data da respetiva entrada na Assembleia da República e a da votação final global por este órgão de soberania”.

 

Assim, continua aquele parecer, «a Proposta de Lei n.º 95/II/2.ª (GOV), que esteve na origem da Lei n.º 17/82 - Diário da República n.º 150/1982, Série I de 1982-07-02, que procedeu à 'Amnistia várias infracções e concede o perdão a várias penas por ocasião da visita a Portugal do Sumo Pontífice’ (visita a Portugal do Papa João Paulo II de 12 a 15 de maio de 1982), deu entrada na Assembleia da República em 5 de maio de 1982 e foi aprovada em votação final global em 1 de junho de 1982» e que «também o Projeto de Lei n.º 779/V/4.ª (PSD, PS, CDS-PP, PRD e PCP), que esteve na origem da Lei n.º 23/91 - Diário da República n.º 151/1991, 1º Suplemento, Série I-A de 1991-07-04, relativa a ‘Amnistia de diversas infracções e outras medidas de clemência’, por ocasião do 17.º aniversário do 25 de abril e da visita a Portugal de Sua Santidade o Papa João Paulo II (visita que decorreu de 10 a 13 de maio de 1991), deu entrada na Assembleia da República em 7 de junho de 1991 e foi aprovada na generalidade, especialidade e votação final global em 20 de junho de 1991».

 

Como parece evidente estes atrasos na iniciativa do processo legislativo e a necessária celeridade que depois é necessário imprimir-lhe5 refletem-se negativamente no produto acabado, na medida em que no decurso do processo legislativo não se esclarecem muitas das questões que depois se suscitam na aplicação do diploma, dificultando ao interprete a reconstituição do pensamento legislativo (artigo 9.º, n.º1 do Código Civil) e potenciando por vezes lapsos legislativos que deveriam ter sido evitados.

 

Recorda-se o sucedido com a Lei n.º 14/94, obrigando o STJ a afirmar que existe manifesto lapsus calami na redacção do n.º4, do art. 9.º da Lei n.º 15/94, de 11/05, pois o legislador não poderia ter querido referir-se aos n.ºs 1 e 2 desse artigo, mas aos seus n.ºs 2 e 3 (visto que só estes contém hipóteses de exclusão de perdão e não ao nº1) pelo que se impõe a realização de uma interpretação declarativa de tal preceito” (Ac. de 16-10-1997, proc.º n.º 529/97; ver no mesmo sentido os Acs de 19-1-1995, proc.º n.º 47352 e proc.º n.º 47369 de 25-1-1996, proc.º n.º 48794).

 

Por outro lado, a Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, referia-se ao abandono de sinistrado no artigo 2.º, n.º1, alínea c). O STJ teve de assinalar que “A referência ao abandono de sinistrado feita na Lei 29/99, de 12 de Maio, deve considerar-se um anacronismo do legislador, que não atentou na revogação do Código da Estrada que previa aquele crime operada pelo DL 114/ 94 de 3 de Maio, e que reproduziu, praticamente, o que a tal respeito dispunha o art. 9.º, n.º 2, al. c), da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio. Tal referência ao abandono de sinistrado impeditivo da aplicação da amnistia prevista na Lei 29/99 aos infractores do Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, há-de entender-se reportada ao crime de omissão de auxílio p. e p. no art. 200.º do CP”(Ac. de 29-6-2000, proc.º n.º 1998/2000”).

 

Já à face da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, se apontaram problemas à utilização no artigo 7.º, n.º1 do vocábulo “condenados” (cfr. infra n.º 12.1)

 

Nestas despretensiosas notas práticas procurarei sobretudo dar notícia do que a respeito da Lei n.º  38-A/2023, de 2 de Agosto, foi sendo decidido pelas Relações e pelo STJ ao longo dos primeiros seis meses de aplicação daquele diploma legal, acrescentando algumas anotações pessoais6.

 

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1 Doravante também designada por Lei ou Lei de amnistia.

 

2 Na nota constante do sítio da Presidência da República refere-se que o Presidente da República promulgou a Lei da Amnistia em 1 de agosto de 2023 “embora lamentando que a amnistia não tenha efeitos imediatos, pois só entrará em vigor a 1 de setembro”.

Salvo o devido respeito, aquele lamento presidencial não se justificava.

Como logo a Desembargadora da Relação de Guimarães Dr.ª Ausenda Gonçalves, presidente da comarca do Porto, assinalou em texto que gentilmente nos forneceu intitulado “Comentários e sugestões de alterações à proposta de Lei n.º 97/XV/1ª”, datado de 28 de Junho de 2023, já “[a]nteriormente foram aprovadas pela Assembleia da República leis de amnistia e de perdão de penas por ocasião da visita a Portugal do Sumo Pontífice, sendo que a sua entrada em vigor não coincidiu com tal visita”. Por outro lado, a aplicação da lei implicava “…a movimentação e tramitação de um avultado número de processos e, assim, a um significativo acréscimo de trabalho nos tribunais que se debatem, conforme é do conhecimento público, com uma expressiva falta de oficias de justiça”. Salientando que os mapas de turnos dos juízes e dos magistrados do Ministério Público escalados para assegurar o serviço urgente há muito se encontravam aprovados o número de juízes e magistrado escaldos poderá revelar-se insuficiente. Por isso, a autora daqueles comentários concluía que “seria absolutamente conveniente que, caso a proposta de lei …viesse a ser provada, a mesma só entrasse em vigor após 31-8-2023, ou seja, após as férias judiciais”.

 

3 Após o 25 de Abril foram publicados mais de vinte diplomas dos quais se destacam o Decreto-Lei n.º 259/74, de 15 de Junho, as Leis n.º 3/81, de 13 de Julho, n.º 17/82, de 2 de Julho, 16/86, de 11 de Junho, n.º 23/91, de 4 de Julho, n.º 15/94, de 11 de Maio, n.º 9/96, de 23 de Março, n.º 29/99 de 12 de Maio e n.º 9/2020, de 10 de Abril. O Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pág. 695, §1117, a propósito desta profusão legislativa considerava que a mesma era “confirmadora da suspeita de que tais leis têm sido ilegitimamente usadas como meio de controlo dos níveis oficiais da criminalidade, nomeadamente do número de condenados a penas privativas de liberdade”. O Dr José António Veloso, “Pena Criminal”, in Revista da Ordem os Advogados ano 59, n.º2- Abril 1999, pág. 551,  refere-se mesmo a “amnistias repetidas com fins de marketing político ou de alívio orçamental”.

Segundo o Prof. Germano Marques da Silva, “Amnistia”, in Polis Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Lisboa- S. Paulo, 1983, pág. 286 “…o recurso frequente a esta medida [amnistia] cria a expectativa de impunidade, convertendo-se em estímulo ao incumprimento das leis e pode gerar sentimentos de revolta naqueles que as respeitaram: por isso o uso deste atributo da soberania deve ser excepcional para não redundar em injustiça”.  

 

4 Eduardo Correia e Taipa de Carvalho, Direito Criminal III (2), Coimbra, 1980, pág. 5, Sousa e Brito, “Sobre a Amnistia”, Revista Jurídica (nova série), n.º 6, Abril/Junho 1986, págs. 15-47 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, cit., pág. 687, nota 10.

 

5 Assim a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias não emitiu parecer sobre a Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª “atento o curto prazo disponível para o efeito e o disposto no n.º 3 do artigo 136.º do Regimento da Assembleia da República que determina que a falta de parecer não prejudica o curso do processo legislativo em apreço”.

 

6 Sobre muitas outras questões que ainda não foram objecto de apreciação pelas Relações ou pelo STJ, vejam-se, para além do texto da Desembargadora Dr.ª Ausenda Gonçalves, os estudos dos juízes de direito  Dr. José Esteves de Brito, “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” (Julgar Online, Agosto de 2023) e  “Mais algumas notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” (Julgar Online, Janeiro 2024), e da Drª Ema Vasconcelos, “Amnistia e perdão – Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto” (Julgar Online, Janeiro 2024).

 

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